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sábado, 13 de junho de 2015

BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE, por Luís Roberto Barroso (Min. STF)


Fonte: Portal Migalhas (link)


Durante evento na prestigiada Harvard, intitulado “Harvard Brazil Conference”, o ministro Barroso participou apresentou em uma das conferências de encerramento uma reflexão sobre o Brasil: um olhar para o passado, para o presente e para o futuro.
Sob o título "O legado de trinta anos de democracia e os desafios pela frente" —, Luís Roberto Barroso destacou pontos positivos e negativos desse período, a complexidade do momento atual e o que reserva o futuro.
A ênfase de S. Exa. recaiu sobre a importância de, para melhorar as práticas no espaço público, melhorar, também, a ética privada.

Veja a íntegra abaixo.
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BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
II. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
2. Estabilidade monetária
3. Inclusão social
III. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
2. Deficiências do sistema político
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
1. No plano econômico
2. No plano político
3. No plano da percepção social e da opinião pública
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
2. Três itens de uma agenda de avanço social
3. Brasil: um sucesso a celebrar
I. INTRODUÇÃO
A história da minha vida adulta começa dez anos antes da redemocratização do Brasil, em 1975. Eu tinha 17 anos e me preparava para ingressar na Faculdade de Direito. Os chamados “anos de chumbo” estavam ficando para trás, com a abertura “lenta, gradual e segura” do Governo Geisel. Mas a imprensa ainda se encontrava sob censura prévia, havia forte repressão aos opositores do regime militar e episódios de tortura ainda ocorriam aqui e ali. Um fato específico, ocorrido em outubro de 1975, foi o meu rito de passagem para o Brasil real: a morte do jornalista Vladimir Herzog em dependências do Segundo Exército, em São Paulo. A versão oficial era a de que ele fora detido para averiguações, sob suspeita de integrar uma organização (não violenta) de esquerda, e cometera suicídio. No entanto, juntando diversos fragmentos de notícias publicadas na imprensa, eu fui capaz de figurar que ele morrera sob tortura e que a história do suicídio era uma farsa1. A partir dali, com o maniqueísmo da primeira juventude, eu já sabia quem era o inimigo e de que lado eu queria estar.
Em 1976, ao ingressar na Faculdade, eu me juntei ao movimento estudantil de oposição ao regime militar. No ano seguinte, em 1977, apoiamos a deflagração da campanha pela anistia “ampla, geral e irrestrita” aos presos políticos e aos brasileiros no exílio. E um ano à frente, em 1978, participamos do início da mobilização pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Pois bem: a ditadura terminou em 1985; a Lei da Anistia veio em 1979; e a nova Constituição, em 1988. Aprendi, dessas experiências, que a história, por vezes, caminha devagar; e, outras vezes, se move rapidamente. É difícil adivinhar quando será de um jeito ou de outro. Mas, a despeito disso, o nosso papel é empurrá-la. É esta a nossa missão, como cidadãos, como intelectuais e como agentes do progresso social: empurrar a história.
Apenas para completar a linha do tempo, relembro mais duas datas marcantes que antecederam a redemocratização. Em 1981, o inquérito do Riocentro, que deveria apurar atos de terrorismo praticados por agentes do Exército foi arquivado, tendo apresentado uma conclusão grosseiramente falsa. Ali se deu a morte moral do regime militar. E em 1984, quando mais de um milhão de pessoas foram à ruas pedir o fim da ditadura, no movimento conhecido como “Diretas já”, deu-se a sua morte política. A eleição de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985, foi a certidão de óbito da ditadura e o início da superação do trauma que ela provocara. Na frase histórica que Mikhail Gorbachev iria pronunciar alguns anos depois: “Matar o elefante é fácil. Difícil é remover o cadáver”.
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
I. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
Desde o fim do regime militar e, sobretudo, tendo como marco histórico a Constituição de 1988, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, o país conviveu com a persistência da hiperinflação – de 1985 a 1994 –, com sucessivos planos econômicos que não deram certo – Cruzado I e II (1986), Bresser (1987), Collor I (1990) e Collor II (1991) – e com a destituição, porimpeachment, do primeiro presidente da República eleito após a redemocratização. Sem mencionar escândalos graves, como o dos “Anões do Orçamento”, o chamado “Mensalão” ou o “Petrolão”, ainda em curso. Todas essas crises foram enfrentadas e superadas dentro do quadro da legalidade constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significou a superação de muitos ciclos de atraso. O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das mudanças autoritárias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convocar eleições presidenciais, ao suceder Deodoro da Fonseca, até a Emenda Constitucional nº 1, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente, o golpismo foi uma maldição da República. Nessa matéria, só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
2. Estabilidade monetária
Todas as pessoas no Brasil que têm 40 anos ou mais viveram uma parte de sua vida adulta dentro de um contexto econômico de hiperinflação. A memória da inflação é um registro aterrador. Os preços oscilavam diariamente, quem tinha capital mantinha-o aplicado no overnight e quem vivia de salário via-o desvalorizar-se a cada hora. Generalizou-se o uso da correção monetária – reajuste periódico de preços, créditos e obrigações de acordo com determinado índice –, que realimentava drasticamente o processo inflacionário. Até hoje, um percentual relevante de ações que tramitam perante a Justiça brasileira está relacionado a disputas acerca da correção monetária e de diferentes planos econômicos que interferiram com sua aplicação. Pois bem: com o Plano Real, implantado a partir de 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda, a inflação foi finalmente domesticada, tendo início uma fase de estabilidade monetária, com desindexação da economia e busca de equilíbrio fiscal. Este é outro marco histórico cuja importância é impossível de se exagerar. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, a inflação acumulada no ano de 1994, até o início da circulação da nova moeda, o real, que se deu em 1º de julho, era de 763,12%. Nos 12 meses anteriores, fora de 5.153,50%. A inflação, como se sabe, é particularmente perversa com os pobres, por não terem como se proteger da perda do poder aquisitivo da moeda. Como consequência, ela agravava o abismo de desigualdade do país.
3. Inclusão social
A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a 2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30 milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população), das quais aproximadamente 10 milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população. O Programa Bolsa Família, implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, unificou e ampliou diversos programa sociais existentes. Trata-se de um programa de transferência condicionada de renda, em que as condicionalidades são: crianças devem estar matriculadas nas escolas e terem frequência de no mínimo 85%; mulheres grávidas devem estar em dia com os exames pré-natal; crianças devem estar com as carteiras de vacinação igualmente atualizadas. O Bolsa Família, conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década de funcionamento, atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoa, cerca de um quarto da população brasileira.
Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Nessas três décadas, os brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%. Na educação, a expectativa de estudo para uma criança que entra para o ensino em idade escolar cresceu 53,5% (5,3 anos). Segundo dados do IBGE/PNAD, 98,4% das crianças em idade compatível com o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Os avanços, portanto, são notáveis. Porém, alguns dados ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge ainda 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e o analfabetismo funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo) alcança 17,8% da população. Também no tocante à desigualdade, houve avanços expressivos, mas este continua a ser um estigma para o país, como atesta o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda. O Brasil ostenta uma incômoda 79a posição em matéria de justa distribuição de riqueza.
II. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
A redemocratização do país foi institucionalizada pela Constituição de 1988. Não é o caso aqui de se analisarem os seus muitos pontos positivos, dentre os quais se destaca a transição bem sucedida para um regime democrático. O que é fora de dúvida é que a Constituição, mais do que analítica, é uma Constituição prolixa, que trata de temas demais e com excessivo grau de detalhamento. A Constituição brasileira cuida de um conjunto amplo de matérias que na maior parte da democracias do mundo são deixadas para a política e a legislação ordinária. Disso resultou que qualquer mudança de alguma relevância na realidade fática ou na conjuntura política exige uma alteração da Constituição. Isso acarreta dois problemas. O primeiro é que a política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas constitucionais. Isso significa a necessidade de maiorias de 3/5 (três quintos), que é o quorum de reforma da Constituição, em lugar de maiorias simples, suficientes para a aprovação de leis ordinárias. A segunda consequência negativa é a instabilidade do texto constitucional: a Constituição de 1988 já sofreu, em 26 anos, 86 emendas. Por certo, um recorde mundial do qual, todavia, não devemos nos orgulhar. Mas há um consolo: a maioria das emendas se refere a matérias que nem deveriam estar na Constituição. O conjunto de normas materialmente constitucionais – relativas à separação de poderes, organização da Federação e aos direitos fundamentais – sofreu poucas alterações ao longo do período e permaneceu, portanto, relativamente estável.
2. Deficiências do sistema político
O sistema político brasileiro, no qual os membros da Câmara dos Deputados são eleitos pelo sistema proporcional com lista partidária aberta, tornou-se uma usina de problemas e de notícias ruins. Três de suas maiores deficiências são (i) a baixa representatividade, (ii) a centralidade do dinheiro (e não da cidadania) e (iii) o fato de ser indutor da corrupção. A baixa representatividade decorre da circunstância de que menos de 10% (dez por cento) dos candidatos são eleitos com votação própria. A grande maioria é eleita por transferência de votos, já que cada partido político tem direito a um número de cadeiras proporcional à votação que recebeu. Disso resulta que o eleitor não sabe exatamente quem elegeu. Pior; semanas após a eleição, não lembra sequer em quem votou. Os custos das campanhas são estratosféricos. Cada candidato disputa com todos os outros – inclusive e notadamente com os de seus próprio partido – em toda a extensão geográfica do Estado, já que não há divisão em distritos. Para eleger-se, um candidato precisa investir muitas vezes mais do que vai receber a título de remuneração nos quatro anos de mandato.
Sem surpresa, o financiamento eleitoral se tornou a maior fonte de corrupção e de desvio de dinheiro no país, como documentam os sucessivos escândalos, dentre os quais se destacam o do “Mensalão” e o do “Petrolão”, ora em curso. E, ouso dizer, os muitos outros que ainda podem aparecer. O país precisa deseperadamente de uma reforma política, mas não consegue produzir consenso mínimo sobre o que fazer. Há interesses demais sobre a mesa. Um bom começo seria eleger os objetivos que uma reforma política deveria buscar realizar, que a meu ver devem incluir: (i) aumentar a representatividade; (ii) baratear o custo das eleições; e (iii) reduzir drasticamente o número de partidos e dar a cada um deles um mínimo de autenticidade programática.
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
Faço a seguir uma breve descrição objetiva do momento atual, complexo e delicado, vivido pelo país. Trata-se de uma mera exposição de fato, sem qualquer juízo de valor, cuidando de três planos distintos: o econômico, o político e o da percepção da sociedade.
1. No plano econômico
No plano econômico, o país vive um momento reconhecidamente desfavorável, no qual avulta um conjunto de problemas, que incluem:
1. Baixo crescimento: o país cresceu apenas 0,1% em 2014, o pior resultado entre os BRICS (que inclui, além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Nos últimos três anos o PIB já tivera uma expansão mais tímida do que em anos anteriores (2,7%, 1% e 2,5%). A perspectiva para 2015 não é promissora.
2. Inflação alta: em 2014, 6,41%, superando a meta de 4,5%. Em fevereiro, o índice acumulado de 12 meses era de 7,7%, a sexta mais alta do mundo2.
3. Contas externas ruins: o item transações correntes, no Balanço de Pagamentos, teve déficit de US$ 91 bilhões.
4. Gasto público elevado e dificuldades na aprovação do Ajuste Fiscal.
5. Redução de investimentos privados e sinais de aumento de desemprego (de acordo com a OIT, a taxa passou de 6,5% em 2013 para 6,8% em 2014 e deverá chegar a 7,3% em 2015).
2. No plano político
No plano político, por igual, uma série de circunstâncias desfavoráveis se acumularam, podendo-se assinalar dentre elas as seguintes:
1. A Presidente ganhou as eleições por maioria mínima (51,64% contra 48,36%) (pouco mais de 3 pontos percentuais de diferença).
2. A Câmara dos Deputados elegeu um Presidente que é adversário da Presidente da República (atuou na campanha do candidato por ela derrotado e tem adotado postura de clara oposição).
3. O Presidente do Senado Federal e da Câmara dos Deputados foram incluídos na investigação requerida pelo Procurador-Geral da República e acusam o governo de haverem interferido para que isso acontecesse.
4. As acusações de corrupção feitas em delação premiada envolvem partidos da base de apoio do governo, inclusive e sobretudo o Partido dos Trabalhadores.
5. Há um conjunto de manifestações populares, algumas espontâneas e outras orquestradas, muitas delas com palavras de ordem pelo impeachment.
3. No plano da percepção social e da opinião pública
Por fim, no âmbito da sociedade civil, uma onda de insatisfação e ceticismo tem contaminado o momento presente, por motivos diversos, dentre os quais:
1. O escândalo de corrupção na Petrobras tem um efeito devastador sobre o sentimento social, tanto por sua extensão quanto por envolver uma empresa de grande valia simbólica para o país.
2. Todas as grandes empreiteiras, responsáveis pelas principais obras do país, aparentemente estão envolvidas. Isso dá à corrupção uma dimensão endêmica e generalizada. De repente, tudo ficou sob suspeita, de aeroportos a hidrelétricas, passando por estradas e estádios.
3. Há temor de que existam mais escândalos por vir, em outras empresas e fundos estatais ou paraestatais.
4. A classe média, a imprensa e a maior parte dos formadores de opinião votaram na oposição e não nutrem simpatia pela Presidente.
5. Algumas providências urgentes na área econômica e relativas ao ajuste fiscal, além de impopulares, contrariam em alguma medida o discurso de campanha.
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
1. Há uma saturação da sociedade em relação ao modelo político do país e sua baixa identificação com a cidadania.
2. Há uma saturação em relação à corrupção endêmica no país.
3. Há uma saturação em relação à qualidade dos serviços públicos.
4. A insatisfação social é ampla e difusa. Ela não se concentra em lideranças específicas. Pelo contrário, nenhuma liderança política atual simboliza efetivamente este sentimento de mudança. Em muitas manifestações, é inequívoca a hostilidade à classe política em geral.
5. O país enfrenta dificuldades éticas não apenas no governo, mas na sociedade em geral. Pessoas apontam o dedo incisivamente, mas vivem sob a égide de uma moral dupla, quando não da mais pura hipocrisia.
Exemplo 1. O país tem problemas civilizatórios básicos em relação ao respeito ao outro, a não buscar vantagens indevidas e a agir com boa-fé. Entre eles se incluem a dificuldade em respeitar a fila, as barbaridades no trânsito (uso do acostamento, estacionamento na calçada, embriaguez ao volante, atropelamentos com fuga), a prática costumeira de não dar nota em restaurantes, a cobrança de preços diferentes por prestadores de serviços se há exigência de recibo pelo usuário, a vandalização de lugares e monumentos públicos etc.
Exemplo 2. Um caso concreto emblemático. Tenho um casal de conhecidos que me contou, incidentalmente, a seguinte história. Ambos manifestaram indignação com a empregada doméstica, que pedira para não assinar a carteira para poder continuar a receber a Bolsa Família. Pouco à frente na conversa, contaram que a filha vivia conjugalmente com um companheiro há muitos anos, mas que não havia se casado para não perder a substancial pensão que recebia do avô, que somente beneficia neta solteira. Como disse, há uma moral dupla. Mas não se trata de uma atitude deliberada de má-fé: as pessoas nem se dão conta. Foram criadas nessa cultura e a consideram um dado da realidade, e não uma escolha pessoal.
Repito, para que não haja dúvida: não estou endossando ou negando qualquer desses pontos. Trata-se de uma mera fotografia do momento atual, como eu consegui captar do meu ponto de observação.
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
Não se impressionem excessivamente com a complexidade do momento atual. Crises e insucessos momentâneos fazem parte da história dos povos e do seu processo de amadurecimento. Nas horas de aflição, é sempre bom lembrar o quanto avançamos. Tome-se o exemplo dos direitos fundamentais. A liberdade de expressão, tardiamente, mas com grande ímpeto, desfruta o status de liberdade preferencial. Ações afirmativas de vários graus têm ajudado a enfrentar a discriminação e a exclusão social de afrodescendentes. Há uma visível ascensão social da mulher na vida brasileira, inclusive com o combate severo à violência doméstica (Lei Maria da Penha). O direito dos homossexuais à igualdade plena vem sendo progressivamente reconhecido, inclusive quanto às uniões civis e ao casamento. A crise brasileira hoje é de outra natureza: a de uma sociedade que melhorou o seu nível de vida, que passou a ter mais consciência de seus direitos e tornou-se mais exigente em relação às práticas políticas e aos serviços públicos que recebe. Nossos desafios no presente são os do aprofundamento democrático e os da mudança de patamar econômico e social, inclusive com o aumento do nível de renda. Somos muito melhores do que já fomos, ainda que não tão bons quanto queremos ser.
3. Três itens de uma agenda de avanço social
Para superar este atraso, a agenda do país deve incluir, além da Reforma Política, diversos outros itens essenciais. Selecionei três para compartilhar aqui:
1. Em matéria de EDUCAÇÃO, alcançada a universalização do ensino fundamental, é preciso investir em qualidade efetiva; o ensino médio, por sua vez, deve ter a sua universalização elevada à condição de prioridade máxima; e, no tocante ao ensino superior, precisamos criar instituições de ponta, em um modelo totalmente diverso do que está aí (mas sem enfrentar ou desfazer o que já existe): público nos seus propósitos, privado no seu financiamento, com bolsas de estudo para recrutar os melhores alunos, com professores contratados em seleções internacionais e aulas em português, inglês e espanhol. Não é possível detalhar aqui esse projeto, no qual eu trabalhava quando fui indicado para o Supremo Tribunal Federal, mas considero-o essencial para o país.
2. Em matéria de ECONOMIA, precisamos superar o preconceito contra a livre-iniciativa e o empreendedorismo. Esse preconceito decorre do capitalismo de Estado que desde o início do processo de substituição de importações e de industrialização se praticou no Brasil. O imaginário brasileiro ainda associa o capitalismo doméstico a (i) concessões com favorecimentos, (ii) obra pública com licitações duvidosas, (iii) golpes no mercado financeiro e (iv) grandes latifúndios, sucessores das sesmarias ou produtos de grilagens. É uma percepção que vem do tempo em que toda riqueza era injusta, quando não desonesta. Precisamos de marcos regulatórios claros, respeito aos contratos, estímulo à competição e ao capital de risco. Ah, sim: e de empresários que não sejam viciados em financiamento público.
3. E, por fim, em matéria de COMPORTAMENTO SOCIAL, precisamos do florescimento da sociedade civil, independente do Estado, criativa e solidária, com empreendedores sociais que conduzam uma agenda verdadeiramente cívica. Necessitamos de boas causas, boas ideias e de filantropia. Pessoas e instituições que funcionem como agentes do bem e do progresso social. Iniciativas pequenas ou grandes, que incluem a adoção de uma praça, o financiamento de uma biblioteca de bairro, a ajuda material a uma escola carente, a difusão do acesso à internet, a manutenção de um posto de saúde, a prestação de assistência judiciária, o apoio financeiro e logístico a abrigos de menores, projetos de arborização de comunidades, ensino à distância pela rede mundial de computadores, recuperação de drogados, reinserção de presidiários etc3. Em muitos desses domínios já existem iniciativas relevantes e virtuosas, mas longe de serem suficientes. Mudando de patamar, pode-se incluir a subvenção a um museu, a uma orquestra, a jovens promissores. Se queremos mais sociedade e menos Estado, a sociedade tem de fazer a vida acontecer. A crise atual seria menor se o Estado não fosse protagonista de tudo.
3. Brasil: um sucesso a celebrar
É preciso ter em conta que o Brasil só começou, verdadeiramente, em 1808, com a vinda da família real. Até então, os portos eram fechados ao comércio, era proibida a fabricação de produtos na colônia, bem como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior, e cerca de 98% da população era analfabeta.
Mais grave ainda, um terço dos habitantes eram escravos, o que constituía uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Além disso, fomos herdeiros de uma tradição que, apesar de muitas virtudes, era a do último país da Europa a abolir a Inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Tivemos que construir um país quase do zero, a partir do início do século XIX. Pois bem: em pouco mais de 200 anos, o Brasil se transformou em uma das dez maiores economias do mundo. Nos últimos tempos, cerca de 30 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza. Temos uma das maiores democracias de massas da Terra, com estabilidade institucional e alternância no poder. Nosso sistema de urnas eletrônicas é original, confiável e admirado por toda parte. Em suma: o Brasil foi um dos maiores sucessos do século XX. Eu olho para trás e vejo realizada boa parte dos meus sonhos de juventude. Agora, ao longo do século XXI, vamos enfrentar o abismo social brasileiro, com educação, empreendedorismo e serviços públicos de qualidade. E, então, com atraso, mas não tarde demais, chegaremos finalmente ao futuro, oferecendo um exemplo de civilização para o mundo, com justiça social, liberdades públicas, diversidade racial, pluralismo cultural e alegria de viver.
______________
1 Algumas coisas que estavam fora de lugar: Herzog era judeu, mas não fora enterrado na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, celebrou um culto ecumênico na Praça da Sé em sua memória. Uma multidão comparecera ao evento. Como peças embaralhadas de um quebra-cabeças, eu tentava entender porque uma autoridade católica celebrara uma cerimônia pública para um judeu que havia se suicidado, atraindo milhares de pessoas. A partir desses dados, minha pequena investigação pessoal confirmou a evidencia: Herzog fora preso arbitrariamente e morrera sob tortura nas mãos das autoridades militares.
3 Para outros exemplos, v. Daniel Barcelos Vargas, Creative Society in the Making, mimeografado, dezembro de 2013, p. 2; e Rony Meisler, Quando culpar o Estado sairá de moda?, O Globo, 11 out. 2014, p. 15.





segunda-feira, 18 de março de 2013

Uma canção de escárnio


"Uma canção de escárnio" é texto de autoria de Carlos Melo, cientista político; foi publicado no portal do jornal Estado de São Paulo no dia 16 de março de 2013 e denota a realidade do Poder Legislativo nacional. Atualmente um Poder que é a contradição em termos, por isso vale o destaque para leitura.



Uma canção de escárnio

Até nas comissões do Congresso, onde ainda se mantinha alguma interlocução entre sociedade e Parlamento, a relação se esgarçou

16 de março de 2013 | 16h 27


Carlos Melo
Numa canção que já vai ficando antiga, o genial e esquecido compositor Itamar Assumpção alertava que "porcaria na cultura tanto bate até que fura". Não se conformava com a escória musical que proliferava na terra de Tom Jobim: "Onde era Pixinguinha, Elizeth, Macalé e o Zé Kéti ficou tiririca pura. Só dança de Tanajura (...) Que pop mais pobre". Desesperado, pedia: "Socorro, Elis Regina". O apelo de Itamar se encaixa na nota desta canção: na política atual, o buraco é cada vez mais evidente.
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano - Leogump Carvalho/Frame
Leogump Carvalho/Frame
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano
No Brasil, sempre foram escassas a confiança e a intimidade com a política, confundida com esperteza e dissimulação. O desapreço e o ceticismo abriram caminho para a avacalhação. Sob a displicência do eleitor, candidatos folclóricos passaram a fazer despropositado sucesso: o deboche, tipo Tiririca, é apenas um aspecto da decomposição, sobretudo, do Parlamento nacional.
A transparência revelou uma torrente de malfeitos, mas também banalizou o escândalo tanto quanto se deu força à uma retórica agressiva, porém, nada reformista. Tipos obtusos aguçaram a desconfiança quando se revelou que seus discursos fáceis eram bijuterias de falsos moralistas. O plantel do farisaísmo é vasto, Demóstenes Torres é um entre tantos. Mas, mais que a seriedade, a sensação de seriedade se retirou do ambiente parlamentar. O descrédito fez crescer a distância, o estranhamento, a indiferença. A política, atividade indissociável da existência humana, afastou-se do cidadão tanto quanto o cidadão da política. Hoje, o indivíduo – que não depende de políticas públicas – acorre à política com fel e rancor; não sem justificada razão, mas com exagero evidente: políticos são bodes expiatórios para quase tudo.
Era natural que a política parlamentar assumisse dinâmica própria, se autonomizasse em relação à sociedade que a rejeita. Mas, na comparação, quando se vislumbra a enorme transformação porque passaram a economia e a sociedade, seu saldo é negativo: a política dos partidos e do Legislativo ficou para trás; parou no tempo, fechada em interesses particulares, avessa à transformação mais ampla que ocorreu no País; o que faz com que a sociedade a rejeite ainda mais. Menos que mal necessário, a política tem se tornado apenas contingente. Afugenta de seu convívio a juventude e os quadros mais bem formados. A qualidade da intervenção vai, naturalmente, ao subsolo do fundo do poço. Com a morte física ou moral, desistência ou resignação de velhas lideranças, a substituição se dá no pior nível possível, reposição por seleção adversa: pela "carreira política" parecem se interessar apenas os sem alternativa. Há tênues sinais de mudança, mas eles ainda precisam se confirmar.
O fato é que, hoje, os discursos são rasos – onde foi parar o grande tribuno? –, a capacidade de negociação mingou, a articulação fez lambança. Onde um dia vicejou Petrônio Portela, resta Renan Calheiros; de Ulysses o destino levou a Henrique Eduardo Alves; de Thales Ramalho a Eduardo Cunha; de Mário Covas a Álvaro Dias; de Fernando Lira a Roberto Freire; de Florestan Fernandes a João Paulo Cunha; de Tancredo a Aécio; de Jarbas Passarinho a Jair Bolsonaro. A sensação é de decadência e desamparo. Mesmo nas Comissões, onde a mobilização corporativa e setorial mantinha alguma interlocução entre sociedade e Parlamento, a relação se esgarçou. Questões sociais mais amplas e representativas foram substituídas por interesses abrigados nos partidos. O moto-perpétuo voraz do sistema exige, mas o governo já não tem o que dar; mesmo migalhas são disputadas.
É o ponto de exaustão do presidencialismo de coalizão: em nome da governabilidade, da segurança contra a chantagem – ou do tempo de TV – tudo é moeda, nada é preservado. Até o PSC tem seu quinhão. Marco Feliciano (Direitos Humanos) e Blairo Maggi (Meio Ambiente) surgem do processo, não são contrassenso. Efeitos, não causa, da tragédia. Na fotografia de nossa modernidade torta, a economia e a sociedade foram ao futuro, a política ficou em seu passado. Esses rostos são legítimos panos de fundo do descompasso, do atraso; o desolador cenário de um tempo sem sentido.
O deboche e a distância resultaram na má renovação. A realpolitik levada ao extremo cumpre um ritual macabro de suicídio coletivo. A deterioração dos métodos, a exaustão do presidencialismo de coalizão compõem seu próprio réquiem, não sem antes produzir uma terrível cantiga de escárnio e mal dizer. A porcaria na política que tanto bate até que fura. "Nossa. Nossa..." Socorro, Ulysses Guimarães!
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO
(Link para acesso ao texto: clique aqui)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Discussões sobre reforma política na XXI Conferência Nacional dos Advogados do Brasil


O primeiro dia da XXI Conferência da OAB em Curitiba/PR, entre todos os assuntos, o que mais despertou a atenção dos espectadores e da mídia nacional foram os debates sobre o destino da democracia brasileira com a tão sonhada reforma política. Destaque para as matérias veiculadas no site da instituição (www.oab.org.br) que resumem as discussões sobre o assunto.


Lewandowski questiona na Conferência da OAB: qual democracia o país deseja?




Curitiba (PR), 21/11/2011 - O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, fez hoje (20), durante a XXI Conferência Nacional dos Advogados, um exame crítico das propostas que estão em tramitação no Congresso Nacional e nos meios acadêmicos versando sobre a reforma política. Para Lewandowski, este não é o momento ideal para se realizar uma reforma profunda, mas chegou, sim, a oportunidade de a sociedade brasileira decidir qual a democracia deseja alcançar e de fazer ajustes no sistema eleitoral, em vigor desde 1932. "Onde queremos chegar? Só depois que a sociedade conseguir responder a essa pergunta será possível partir para mudanças mais aprofundadas na legislação ordinária e para alterar o sistema político e a lei eleitoral".

O desafio foi proposto pelo ministro durante a XXI Conferência Nacional dos Advogados, em palestra proferida no painel "Direitos Políticos", que integra a programação do evento. Entre os ajustes abordados por Lewandowski estão o fim das coligações, no caso do sistema proporcional; a limitação das doações de campanhas; e a criação de uma cláusula de barreira que classificou como "mais inteligente".

No que diz respeito às eleições parlamentares, Lewandowski citou a vedação das coligações como ponto a ser aperfeiçoado, "uma vez que essas inserem certas distorções no sistema". O ministro defendeu a importância de se limitar as contribuições para as campanhas políticas e citou que, nas eleições gerais de 2010, somando a contribuição de pessoas físicas e jurídicas, chegou-se ao valor de quase R$ 3 bilhões, soma injustificável em sua opinião. "Os candidatos são vendidos como se fossem produtos ou mercadorias. Há um verdadeiro marketing que deixa de lado as questões mais técnicas e doutrinárias".

Outro tema abordado pelo ministro foi a possibilidade de criação de uma cláusula de barreira para reduzir o número "exagerado" de partidos políticos. "Tenho dito que vivemos não um pluripartidarismo no Brasil, mas um hiperpartidarismo, com todas as distorções que isso implica", disse Lewandowski a uma platéia de advogados, estudantes de Direito, professores e demais congressistas que somam um universo de mais de sete mil inscritos. "Não temos um sistema que permita se chegar a consensos no Congresso Nacional, pois temos partidos que não são programáticos ou ideológicos, mas meras siglas que vem à tona durante o processo eleitoral", acrescentou o ministro, lembrando que recentemente o TSE aprovou a criação do 29º partido político no País.

O presidente do TSE defendeu, ainda, que se dê um passo adiante na democracia participativa, ampliando as oportunidades que o povo tem de se expressar. "É o caso das consultas populares, como o referendo e o plebiscito, e as iniciativas legislativas populares, mecanismos que precisam ser aperfeiçoados", exemplificou. A Conferência, realizada pelo Conselho Federal da OAB, acontece até a próxima quinta-feira (24) no Centro de Convenções ExpoUnimed, na capital paranaense.



Ex-ministro do TSE defende fim das coligações nas eleições proporcionais


 

Curitiba (PR), 21/11/2011 - O ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),  Carlos Eduardo Caputo Bastos, defendeu hoje (21) o fim das coligações nas eleições proporcionais ao participar do painel Direitos Políticos, na programação da XXI Conferência Nacional dos Advogados, que acontece em Curitiba.  Na opinião de Caputo Bastos, as distorções nas eleições tem causado um grande embaraço na composição partidária. "Temos assistido muitas distorções porque às vezes você vota em um candidato e num partido e acaba elegendo outro candidato de outro partido. Na reforma política, esse tema certamente será amplamente discutido", afirmou.

Caputo Bastos lembrou que qualquer reforma do Parlamento depende muito das convergências políticas. "É muito difícil construir esses consensos no Congresso, mas não tenho dúvidas de que é urgente uma definição sobre a questão do financiamento público, da existência ou não de cláusula de barreira e da cláusula de desempenho", acrescentou. Após a palestra o ex-ministro foi cumprimentado pelos advogados brasilienses Antonio Carlos de Almeida Castro, mais conhecido como Kakay; Daniela Tamanini, da Comissão de Prerrogativas da OAB-DF e Ana Carolina Arrais Bastos, da Comissão Jovem da Seccional de Brasília.



Fonte das notícias: Site da Ordem dos Advogados do Brasil. (www.oab.org.br)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A democracia e a economia

Por Renato Janine Ribeiro*
Publicado originalmente no Valor Econômico (link)
21/11/2011.
 
Em nosso tempo, nada rivaliza com a economia, em termos de poder. Menos de dois séculos atrás, Karl Marx chocava o mundo ao dizer que a política (estou simplificando) seguia a economia. Faz cinquenta anos, a direita usava argumentos religiosos, espirituais, morais para enfrentar o "materialismo ateu", que reduzia a riqueza do ser humano, criado à imagem de Deus, à vulgaridade econômica. Mas como bem disse, embora grosseiramente, James Carville, o marqueteiro de Bill Clinton que foi decisivo para elegê-lo presidente dos Estados Unidos: "O que conta é a economia, seu estúpido".

Esse fato tem vários desdobramentos. O primeiro fortalece a democracia. Acabou, quase por completo, pelo menos nos países em que há comunicação de massas, a ideia de que os pobres acatariam sua condição porque Deus assim o quis. Uma notável peça de Pedro Calderón de la Barca, "O grande teatro do mundo", sustentava, na década de 1630, que cada um deveria contentar-se com sua condição social, do miserável até o monarca, e cumprir o seu papel (daí, a referência ao teatro) adequadamente. Hoje, nem pensar. Em nossa sociedade, todos querem viver melhor. Mesmo quem está no topo da escala social e poderia nada almejar a mais, continua desejando subir. Quanto aos mais pobres, nenhum argumento religioso os convencerá de que devem suportar sua situação, digamos, cristãmente. Um arcebispo de Diamantina, líder da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, disse certa vez que precisa haver pobres, e mesmo muito pobres - porque, se não houver, como os ricos conseguirão ir para o céu, não podendo exercer a virtude da caridade? Admirável essa preocupação de salvar os ricos no Além, ainda que às custas dos pobres aqui e agora. Mas acabou. Ninguém mais diria essa tolice, hoje.

Vencer a pobreza só é possível com a economia

Portanto, os pobres querem, dos governos, que os ajudem a melhorar de vida e a deixar a pobreza. A classe média quer subir na vida e os ricos, pouco numerosos mas com bala na agulha, também. Isso faz que, em países como o nosso, a grande maioria de pobres tenha bem claro o que deseja da democracia: que ela seja social, isto é, que não fique só na política, mas mexa também na estratificação da sociedade, tornando-a mais justa. Esse fator, fortemente democrático, está ligado ao primado da economia em nossos tempos.

Mas há outro lado, que é pouco democrático. Porque quem entende da economia? Bem poucos. O sufrágio universal se impôs. Os eleitores têm cada vez mais consciência do que desejam e querem. Mas o instrumento para realizar essa prosperidade crescente, ou pelo menos para acabar com a miséria, reduzir a pobreza e baixar a desigualdade, é arcano - isto é, de difícil compreensão. Em outras palavras: está numa ciência (ainda que não exata), cujo domínio exige especialização e conhecimento profundo. Daí que as eleições tenham alcance limitado. Isso porque, entre o dia da eleição, que é quando se manifesta a democracia, isto é, a soberania popular, e os quatro anos de gestão dos negócios públicos, onde a economia prevalece, há uma distância - e mesmo um abismo.

Tudo isso, tanto o aspecto democrático que consiste num povo que não aceita mais a pobreza como natural ou santa, quanto o lado pouco democrático de uma gestão das coisas cuja compreensão escapa à esmagadora maioria, traz consequências para as democracias. Primeira e óbvia: nunca se promete uma recessão, um empobrecimento. O que se oferece é o contrário. Vejam a Califórnia, tema de reportagem de novembro na "Vanity Fair", acessível na Internet: o Estado quebrou, vários municípios ricos quebraram, sobretudo porque uma emenda constitucional de perfil conservador exige dois terços do Legislativo para aumentar qualquer imposto. Kaputt. É um caso extremo, mas que mostra que políticos, quando concorrem a uma eleição, têm de omitir o que vão fazer, ou mesmo mentir. De onde José Serra tiraria os aumentos que prometeu, no mês final antes da eleição de 2010, para o salário mínimo e a bolsa-família? Não o acuso; apenas digo que nenhum político pode agir de outro modo. Vão prometer. Então, a emancipação do povo, que consiste em ele não acatar mais a pobreza, vem junto com sua infantilização: ao povo, não se conta a verdade.

Daí, outra consequência: o primeiro ano de governo é de cortes e talvez de recessão. Já o ano da eleição tem que ser próspero, custe o que custar. Os economistas ficam de cabelos em pé ao verem isso, claro. Mas, por outro lado, suas receitas só eles entendem. Pouca gente mais. Alguém acredita que FHC entenda profundamente de economia? Ele conhece finamente a sociedade, seus processos e sua política. Emprestou sua competência para viabilizar o Plano Real, e com ele ganhou dois mandatos presidenciais. Mas a economia tem segredos. Por isso, quem entende dela - ou quem convence os outros que entende dela - tem acesso direto aos governantes.

E aqui vem nosso último problema. Quase todo o receituário dos economistas, salvo os keynesianos e os (poucos) marxistas, é conservador. Propõe corte de gastos públicos, redução de direitos sociais, até mini-recessões. Não há como defender isso junto ao povo, seja este grego, italiano ou brasileiro. Há alternativas? Claro que sim. A Argentina renasceu sem esse receituário. O Brasil superou 2008 sem essas receitas. A Islândia se recusou a cumpri-las. Claro que, em outros casos, o caminho será outro. Mas geralmente só se diz a receita quase única, aquela que nunca passaria numa eleição. Daí que, se a democracia exige uma economia em crescente prosperidade, a atuação dos economistas nem sempre seja muito democrática.


* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve no Valor Econômico às segundas-feiras.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O culto da criatividade individual e da meritocracia. Riscos para a democracia.



Entrevista publicada no site Instituto Humanitas Unisinus - IHU, em 09/11/11. (link)



"Está declinando a ideia da democracia como igualdade, e isso é muito perigoso. O culto da criatividade individual pode minar o vínculo entre as pessoas". Em seu último livro, Pierre Rosanvallon explica por que a promoção das diferenças econômicas é um risco.


A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 08-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Somente uma sociedade fundamentada na verdadeira igualdade pode garantir a coesão social necessária para enfrentar as difíceis provas do nosso tempo. Para Pierre Rosanvallon, essa é uma certeza. O célebre estudioso das formas da política reforça essa ideia em seu último livro, La société des egaux (Ed. Seuil), recém-lançado na França e que já está sendo traduzido para muitas línguas.

O intelectual francês que leciona no Collège de France e dirige La Republique des idées analisa nessa obra a crise do conceito de igualdade em uma sociedade, como a nossa, dominada por diferenças sociais mais acentuadas. Análise a partir da qual nasce, depois, a proposta da "sociedade dos iguais", que soa quase como uma contribuição teórica ao movimento dos indignados.

"O indignados são apenas a ponta do iceberg de um protesto social generalizado que denuncia o desvio intolerável das desigualdades. Um desvio que, além de ser um desastre moral, favorece a "desconstrução social", explica Rosanvallon. "Infelizmente, no entanto, a indignação não se traduz quase nunca em escolhas concretas de reforma. Ou melhor, enquanto nos indignamos, as rupturas sociais aumentam. A consciência política cresce, mas a coesão social retrocede".

Eis a entrevista.

Como isso se explica?                             

A sociedade condena fatos produzidos por mecanismos que, no entanto, são parcialmente aceitos. Por exemplo, denunciam-se as retribuições escandalosas dos traders, mas não nos surpreendemos diante das compensações muito superiores dos jogadores de futebol ou dos artistas. Ou aceitamos, sem muitos problemas, a ideia de que o mérito pode produzir enormes diferenças econômicas. Tudo isso é um sinal do descompasso entre a democracia como regime político e a democracia como forma social. No plano político, as democracias são globalmente mais fortes e críticas hoje do que há 30 anos, podem contar com contrapoderes mais organizados e uma maior informação. Mas a democracia como vínculo social baseado na igualdade está diminuindo perigosamente.

No passado, a dimensão social da democracia contava mais?

Certamente. Para as revoluções americana e francesa, mais do que o regime político, contava a ideia de uma sociedade sem privilégios e diferenças sociais. Por isso a palavra "igualdade" era tão importante, como Tocqueville logo entendeu. Hoje, ela retrocede em toda a parte. Mas uma democracia certamente não pode continuar progredindo se entre os indivíduos falta o sentido de pertença a uma sociedade comum e compartilhada. Na ruptura social, corremos o risco de que o populismo se insinue, ou seja, a patologia da democracia-regime que explora a desconstrução da democracia-sociedade. Diante da crise do sentido de pertença, o populismo responde com a exaltação de um sentimento de comunidade fictício, baseado em uma ideologia nacionalista feita de exclusão, xenofobia e ilusória homogeneidade. Para responder ao populismo, é preciso, portanto, promover uma sociedade em que a palavra igualdade tenha novamente sentido.

Por que nos últimos 20 anos a igualdade social retrocedeu?

A sociedade abandonou progressivamente o modelo redistributivo que, durante quase todo o século passado, atenuou gradualmente as desigualdades sociais. A escolha da redistribuição estava ligada à recordação das grandes provas vividas coletivamente, sobretudo as duas guerras mundiais e ao medo do comunismo que levou até os regimes mais conservadores rumo às reformas sociais. Hoje, a vivência coletiva e o reformismo do medo não atuam mais, contribuindo assim para tornar muito mais frágil o impulso à solidariedade.

Qual foi o peso do triunfo do individualismo?

Foi um fator estrutural determinante, além do mais, favorecido pelo advento do novo capitalismo da inovação, que valoriza a produtividade e a criatividade individuais. A partir dos anos 1980, a meritocracia e a igualdade de oportunidades tornaram-se cada vez mais importantes, sustentadas por uma transformação quase antropológica do individualismo.

Em que sentido?

No alvorecer da democracia, o individualismo era universalizante. Ser um indivíduo significava sobretudo ser como os outros, com os mesmos direitos e a mesma liberdade. Daí a ideia de uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais. Hoje, ao contrário, prevalece a demanda por singularidade, o individualismo que nos distingue dos outros, a necessidade de nos sentirmos únicos que ganha espaço de escolha na sociedade de consumo. Temos a impressão de ter um poder suplementar sobre a nossa vida só porque nos consideramos consumidores conscientes, mas escolher entre cinco operadoras de telefonia não faz de nós cidadãos responsáveis. A verdadeira singularidade é construir a própria vida como indivíduos autônomos, existir como pessoas. O neoliberalismo, ao contrário, respondeu à necessidade de singularidade sacralizando consumidor e indicando como ideal da sociedade a concorrência generalizada.

Como fazer para colocar a igualdade novamente no centro da sociedade?

Insistir sobre o mérito e a igualdade de oportunidades não é suficiente. É preciso elaborar uma verdadeira filosofia da igualdade, que naturalmente não significa igualitarismo. Da igualdade como método de redistribuição, é preciso passar para a igualdade como relação, que deve se tornar a espinha dorsal de uma sociedade de iguais, articulando-a, porém, com a necessidade de singularidade. Hoje, de fato, não podemos mais pensar na igualdade como homogeneidade e nivelamento. É preciso dar a cada um os meios da sua própria singularidade, sem discriminações. Mas, ao lado dessa igualdade "de posição", deve ser promovida a igualdade "de interação", da qual depende o sentimento de reciprocidade, que é fundamental para a coesão social.

Por que a reciprocidade é tão importante?

Há reciprocidade quando cada um contribui de modo equivalente com uma sociedade em que o equilíbrio dos direitos e dos deveres é o mesmo para todos. A ausência de reciprocidade produz a desconfiança social e a falta de confiança com relação à coletividade. Quanto mais se perde confiança, mais os cidadãos se afastam uns dos outros. A reciprocidade está na base das chamadas "instituições invisíveis" que regulam a vida social: a saber, a confiança, a legitimidade, o respeito à autoridade. Hoje, as instituições invisíveis custam a manter o seu status e a sua eficácia. É por isso que é necessário colocar a igualdade no centro do espaço social, tornando possível, dentre outras coisas, aquela igualdade "de participação" que está no cerne da vida política democrática. A possibilidade para todos de intervir na vida pública, mesmo para além do exercício do voto. Favorecer esse tipo de igualdade, da qual também depende, depois, a redistribuição econômica, é do interesse de todos. Um mundo de desigualdades, de fato, além de ser um insulto aos mais pobres, também é um mundo dominado pela insegurança, pela violência e por custos sociais cada vez mais elevados. A sociedade da desigualdade não é apenas injusta, mas também uma ameaça para todos.


                                                                                                                              

Decisão STJ - Imóvel não substitui depósito em dinheiro na execução provisória por quantia certa

  Notícia originalmente publicada no site do STJ, em 09/11/2021. Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em execução po...